“A noite não adormece nos olhos das mulheres” – sobre agressões e machismo

a luta nossa de cada dia

 

A NOITE NÃO ADORMECE NOS OLHOS DAS MULHERES

Uma breve história da nossa loucura. 

Então, as histórias não são inventadas? Mesmo as reais, quando são contadas. Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência.

(Conceição Evaristo)

 

“Às 11h30 da manhã estava no Rio Doce/CDU. Por sorte, algumas cadeiras vagas. Sentei-me e, ao colocar o fone de ouvido, me desconectei por alguns minutos do caos sonoro ao redor. Pouco tempo depois, surgiram risadagens de uns sujeitinhos medíocres que estavam na cadeira de trás. Aquela zombaria me incomodava, tocava e tomava corpo. Continuei escutando música, mas o amargo na minha boca denunciava a violência. Fiquei me perguntando se era comigo: “Será que estou ficando louca? Será que estou “noiando” desnecessariamente?”.

Os pensamentos confusos e incômodos continuavam quando uma outra mulher se sentou ao meu lado. Ela também estava com fones de ouvido, que também não a impediram de escutar a corja se manifestando. A galhofa ordinária continuava. A mulher ao meu lado deu um breve suspiro, abriu a bolsa, pegou o seu martelo e olhou para trás. Olhou com seus olhos de louca e disse com uma voz firme e calma: “Eu mato! Se for preciso, eu mato! Mato mesmo e não tenho nada a perder.” O silêncio agora vinha dos mesmos sujeitos. Ela se voltou para frente e disse pra mim: se tem uma coisa na vida que eu não suporto é preconceito. E, como não podia ser diferente, respondi olhando pros olhos dela: estamos juntas.”

 Deixou-me apenas a insanidade pela dor desmedida

O estereótipo da louca é a desculpa perfeita para os que apontam. A louca é instável, não tem condições de afirmar nada sobre a realidade. A suscetibilidade nervosa característica das mulheres é vista como a incapacidade de observar e analisar as coisas com a “clareza necessária”. Os nervos à flor da pele e a instabilidade hormonal são forjados como característicos de um ser frágil emocionalmente. A invenção da louca serve como meio de invisibilizar as desigualdades e a violência, desse modo evita-se a nomeação das coisas como são. “De onde você tá tirando isso? Não tá acontecendo nada, você está imaginando coisas, você tá nervosa.”

SOMOS AS NETASDa feitiçaria pra bruxaria, é a bruxa que se junta com outras mulheres para fortalecer saberes de cura e é taxada de insana, aquelas que fizeram o pacto com o diabo. Passamos pela histeria, o descontrole total que toma conta do corpo das mulheres. Ainda somos bruxas, ainda somos histéricas e agora somos a população mais medicalizada, somos amigas do Rivotril, diagnosticadas com qualquer outra síndrome. A insanidade foi o que restou entre os dois polos: da falta de responsabilização das agressões do macho e da dor desmedida de ser o que se é. Nos dizem loucas e por muito nos acuamos, entramos na “nóia” da “nóia”. Duvidamos da nossa sensibilidade e da nossa intuição justo como eles precisavam. Foi preciso soco atrás de soco, dos mais perversos, vindos dos nossos amigos, dos nossos companheiros, para que nós conseguíssemos nos reconhecer.

Somos apontadas, queimadas, apedrejadas e espancadas. Nos dizem loucas. Eu quero é novidade! Somos loucas sim e a partir de agora assumimos a nossa loucura há muito tempo forjada. Mas não aceitaremos que nos apontem o dedo. Somos loucas porque NÓS dizemos que somos, porque a loucura é o nosso instrumento de fala. A loucura é que permite que nós falemos, pois se não fôssemos loucas o suficiente para falar, morreríamos, igualmente loucas, mas sufocadas. Não somos sãs o suficiente para permanecermos no cotidiano silenciosamente opressivo. Não mais abaixaremos a cabeça, e sim desconfiaremos do que eles dizem sobre nós. Eles já falaram demais, diagnosticaram demais, riram demais e violentaram demais pra permanecerem e reafirmarem seus privilégios imundos de homem.

Afirmamos que a loucura dessa carta parte do acúmulo sem fim das forças e escritos femininos que tecem nossa trajetória. Isso é fruto de uma reflexão nossa, das nossas relações, de como vivemos nesse mundo e de como queremos remodelá-lo. Dos nossos erros e acertos. É uma tomada de posição clara e necessária. Chegou a hora dos homens escutarem. Não cabem apropriações e não se espera uma aprovação do que aqui atestamos. A tentativa de tomar para si o lugar da fala, no nosso processo de corporificação e sujeitamento não é mais eficaz.

Entretanto, um posicionamento é preciso. A falta de reconhecimento dos erros, a falta de humildade em questionar seus privilégios de homens cis¹ faz parte de um movimento circular uniforme machista que insiste em manter a inadequação de coletivos ditos libertários às questões de gênero/sexo/desejo. Não assumir participação na sequencia de agressões aqui relatadas refletem como a postura do meio libertário não propõe tornar o cotidiano verdadeiramente transformador.

Manipulação masculina e isolamento das afeminadas: ei, libertário, eu sei que você é machista! 

Os mais humilhantes detalhes morrem na minha garganta, mas nunca nas minhas lembranças. (Conceição Evaristo)

 Somos instruídes, desde a tenra infância, que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Pois bem, é contra esta máxima que trazemos nossa denúncia e, desta vez, ela incide sobre nós mesmes. O foco primordial aqui é abrir os nossos olhos e direcionar os homens a uma autocrítica sobre como eles se colocam nas relações; seja entre os próprios homens, seja em sua participação na construção de comunidades e, especificamente, em sua relação com as mulheres e todes não-machos.

Não precisamos repetir que quem vos escreve é um conjunto de loucas em convenção histérica. Isso talvez te quebre na emenda, mas já não cabe a nós mesmas nos compadecer, seja você meu amigo de anos, meu vizinho que mal dou bom dia, ou quem sabe um bêbado nojento que depois “não lembra o que fez”.

Imagine se um cara lhe conta “eu estava em casa, parado, e do nada uma cadeira é lançada na minha cabeça pela minha companheira”. Você não se perguntaria se está faltando alguma parte dessa história? Histórias como essa foram relatadas por Soulfly aos seus amigues libertáries durante quase seis meses no intuito de expor os conflitos vividos em seu relacionamento de alguns anos com sua (atual) ex-companheira, nas quais alegava-se a instabilidade dela regada a remédios controlados.

Essa exposição, por parte dele, das suas vivências privadas só vieram à tona porque uma bicha louca-afeminada que compõe o “meio libertário”, em contato com ele em outros momentos, logo percebeu a existência das agressões físicas e psicológicas cometidas por ele. Por isso, procurou a então companheira a fim de se solidarizar. Soulfly, sentindo-se ameaçado pela bicha e sua iniciativa de desmantelar a história do bom militante, espalhou um boato entre os membros do LA.M.A. – Laboratório de Mídias Autônomas. O boato era o seguinte: a bicha se aproveitou do momento de “fragilidade” e “confusão” da ex-companheira para encher a sua cabeça de coisas, dizendo, inclusive, que os membros homens do LA.M.A. agrediam suas companheiras, tratando-a por fofoqueira e maligna. Daí a fofoca real começou, Soulfly foi disseminando essa história mentirosa, tentando tirar o dele da reta e falando para cada pessoa o que impressionaria mais. Os machos, que já não gostavam da bicha – dentre outras coisas – por ela sempre apontar suas posturas machulentas, viram nesse episódio uma ótima oportunidade para “gongá-la” de vez e retirar do espaço mais uma louca. Este foi o começo das manobras de manipulação por parte do agressor. Colocou a bicha como mentirosa e culpabilizou a (atual) ex-companheira pela dita “instabilidade do relacionamento” para que ninguém soubesse o que hoje se confirma.

Soulfly é antimachista, antisexista, antiproibicionista, anticapitalista, antifascista, vegano, cicloativista, membro² do coletivo de contrainformação LA.M.A e estudante do curso de Serviço Social da UFPE… Anarquista, frequentador da cena punk, apreciador de arnaco-funk e leitor assíduo de Emma Goldman. Ele não é um sonho? SÓQUENÃO!

Soulfly aparentava uma postura passiva, afirmando que ele não fazia nada e que sua (atual) ex-companheira era a causadora de tudo. Apesar do “nada” ter forte agência em seu relacionamento, este mesmo “nada” aparecia com um padrão de comportamento bem delineado, esse “nada” estava desequilibrado emocionalmente, esse “nada” tomava remédios controlados, e se erguia em fúria do nada. Esse “nada” não sabia o que fazer da própria vida e por isso levava a vida de Soulfly a um nada confuso e sombrio. O “nada” representava os atos velados de violência doméstica cometidos pelo figura e é por esse “nada” aqui descrito que nos solidarizamos, esse “nada” somos todas nós que aqui escrevemos.

No decorrer desse processo experienciado pelo casal, amigues libertáries do homem em questão construíram uma rede de solidariedade ao relacionamento baseada numa crença de que era mais um conflito de casal. A questão é que sempre se tratou de uma relação e apenas uma das partes era ouvida: a parte do macho. Por que será que isso aconteceu?

A questão começa muito antes, inicia-se no simples dado que mostra os movimentos libertários sendo amplamente mais frequentados por seres masculinos. Se estes seres masculinos agridem suas companheiras em casa, não são elas que estão no coletivo para poderem, sequer, pedir socorro. São os homens que estão no coletivo libertário e podem contar a sua versão da história, como aconteceu com Soulfly.

É incrível como os coletivos libertários sabem que não são representativos em termos de classe, mas decidem criar uma série de alternativas para alcançar esse público, passam horas a fio em reuniões, autocríticas e planejamentos pensando como fazer ações com a classe trabalhadora em meio a uma greve ou em como criar vínculos com a conclamada “base”. Porém, quando se trata de gênero, os machos ditos libertários não assumem que o visível desfalque afeminado reflete uma profunda irrepresentatividade. Não reconhecem a ausência feminina como uma desigualdade reproduzida por eles mesmos, tratam-na como um degrau que as mulheres têm que superar para estarem presentes. Fodam-se!

Na escrotice, a situação era descrita e contextualizada por Soulfly na mentira de sua recepção passiva de que não-tinha-feito-nada-e-do-nada-me-vi-envolvido-por-essa-maré-de-conflitos-que-eu-não-consigo-visualizar-a-minha-agência-nisso-tudo-só-sei-que-está-muito-difícil-para-mim. A “face agressora” da companheira todes tivemos conhecimento – gritos, empurrões e objetos lançados. E porque a face realmente agressora do militante modelo foi velada?

O fato é que Soulfly abusou da sua posição de confiança diante do grupo de amigues libertáries para difundir a ideia de que sua companheira era louca e inacessível, isolando-a. Como esse grupo exalava uma imagem frequentemente arrogante de “coerência libertária”, o assunto foi escamoteado, entrando num véu de fofoca e boato por meses a fio sem sequer uma investigação coletiva. Outros agentes que já tinham conhecimento/desconfiança das agressões de Soulfly foram marginalizades, como aconteceu com a bicha-louca. Naturalmente porque a autoridade que Soulfly detinha com seus amigos libertários machistas do LA.M.A. era tão alta que ele foi capaz de fazer a caveira da bicha, enquadrando-a, como enquadram todas nós, no estereótipo de mulher-louca-fofoqueira, obtendo crença e apoio de todo esse grupo.

Ao acessarmos sua ex-companheira, as agressões a ela foram atestadas e eram brutais: a pedrada no rosto, o despejo de suas coisas na calçada, as tapas, os murros, o chute na sua barriga (grávida), a pressão para que ela abortasse, a exclusão social, os arranhões, as ameaças, etc. É diante do dito “nada” que nos levantamos e nossa solidariedade é toda, toda, regalada a ela. E para nós, esse “nada” é tudo!

Por tudo isso, não é de se surpreender, que o caso só tenha sido encaminhado para denúncia pública quando se tornou escancarado. Ou seja, quando foi vista uma briga dos dois no Ocupe Estelita. A partir daí, histórias relatadas sobre o comportamento agressivo dele ficaram mais fortes – outros relatos de ex-companheiras do agressor apareceram, várias outras testemunhas de atos opressivos e violentos apareceram – e ela pôde contar com o apoio das ocupantes para não ficar tão vulnerável após a denúncia. Aliás, não é coincidência que no espaço do Ocupe Estelita ela tenha sido vista “partindo para cima dele”. O homem não bate na mulher na rua por que as pessoas intervirão. Já a mulher bate, faz escândalo, grita no espaço publico, justamente por que este é o único lugar onde ela está, momentaneamente, protegida da violência do agressor.

Tanta clareza político-ideológica e tanta emoção sem vazão.

“Eu nem conhecia ela!”, “eu só sabia da situação por alto”, “não podemos deixar de lado os nossos esforços cotidianos para sermos “menos machistas”. Todas essas foram justificativas dadas por machos do LA.M.A. para se eximirem de uma responsabilidade que é inevitável. A responsabilidade não foi somente a de acreditar piamente na história que o agressor contava, foi também por todo o processo violento pelo que nós passamos causado pela solidariedade da classe macho. Foi a falta de prioridade que a situação toda teve quando agressões machistas foram vistas por membros do coletivo e não-problematizadas, foi nos terem dito que isso não era digno de investigação – para não nos metermos -, foi terem nos desacreditado. Essa solidariedade se manifestou a remendo de todos esses acontecimentos que por ora relatamos – é bom deixar claro que, se fôssemos parar para relatar todos os que acontecem, termos que escrever um “Tratado sobre as intra-violências sofridas pelas mulheres e bichas em espaços políticos libertários”.

É indigesto ouvir ou ler que sua pica será cortada se encostar sem permissão? É constrangedor ouvir um não incisivo no momento em que você quer, mas a menina não está afim de ficar com você? É eticamente abominável ter sua bicicleta quebrada em resposta às violências sofridas em seus relacionamentos? É indigesto circuncisão clitoriana. É constrangedor sentir você chegar bêbado e vir se amolengar no colchonete me alisando. É eticamente abominável eu ficar confinada em casa me sentido aloka causadora dos problemas do mundo! Muitas picas voarão fora, muitas trepadas deixarão de entrar na sua lista e muitas bicicletas deixarão de rodar por aí. Isso parece, para nós, mais tangível do que esse projetinho evolucionista de barricadas que vocês anunciam e que os faz confiantes numa pseudo-capacidade de dominar a realidade.obá

O mais importante de tudo isso é perceber essa falência de coletivos do movimento libertário em alcançar o problema da violência machista; em, no mínimo, detectá-la e investigá-la entre seus pares. Quase sempre as problematizações que tratam das relações interpessoais, que estão no micro, no privado, são deslegitimadas pelos machos libertários como sendo fofoca, picuinha ou “nóia” – aspectos que sabemos, nós mulheres e bichas, são sempre designações para os nossos padrões de comportamento e tentativas de enquadrar nossas angústias e inquietações. Isso porque querem manter os lugares de privilégios, de pessoas públicas, homens cis notáveis e respeitáveis publicamente, a figura libertaria de homens militantes. Tratar dessas temáticas questionaria o nível da voz masculina, as atividades tipicamente masculinas e as lideranças que são “invisíveis” ou “sutilmente”³ machulentas. É interessante perceber como esses discursos, que querem direcionar nossos corpos e mentes para as atividades deles, a moral deles e a revolução deles4 são tão eloquentes que vestem uma roupagem de “espaço livre de coerções”. Isso é muito perigoso.

O momento agora é de refletir sobre o quanto a nossa conivência e omissão reforçam mecanismos de não-proteção às mulheres. Um coletivo libertário que naturaliza a pouca permanência de mulheres no espaço não é coerente. Um coletivo libertário que naturaliza a secundarização das companheiras dos militantes também não é coerente. Um coletivo libertário que se acostuma com a desunião entre as próprias mulheres do coletivo é, absolutamente, incoerente.

 Contra a violência machulenta a violência afeminada

Às vezes nos escondemos atrás no véu da ignorância para nos esquivar de responsabilidades. A suposta ignorância argumentada pelos homens do L.A.M.A. foi, notoriamente, a escolha de um lado. Independentemente do que já havia sido divulgado pela bicha-louca-afetada e da versão da ex-companheira de Soulfly, o que precisava ser mantido eram os laços de fraternidade que os protegiam em seus lugares inabaláveis de “pobres homens ignorantes”. Esse argumento foi levado ao ponto de só ser reconhecida a agressão quando esta não pôde mais ser escondida, porque o último conflito do casal não ocorreu entre quatro paredes. O conflito saiu do local de proteção e abrigo legítimo do macho. Foi a vez de “dela ir partir para cima dele” e isso de maneira nenhuma pode ser visto como mais um ato violento dentro de uma relação problemática, mas como uma reação afeminada à agressão machista. Foi nesse momento, no Ocupe Estelita, que ela se reconheceu e reagiu admitindo agora no seu ex-companheiro um agressor. Foi preciso que a mulher revidasse para evidenciar o que há muito já se sabia, mas se negava, quebrando o ciclo da violência.

Do que se tratam todos esses acontecimentos contados aqui se não de uma clara demonstração da manutenção dos privilégios, de quem pode falar e de quem não pode, de quem tem essa legitimidade ou não? Por que ao se eximirem de procurar a outra parte para ouvir, no impulso primário de esclarecer toda a história, reafirmaram os seus posicionamentos aparentemente lineares, coerentes e corretos perante o mundo. Viraram a cara para as loucas, para a bicha “fofoqueira” e, com isso, permaneceram em seus pedestais, negando tudo que se parece irracional.

Essa situação foi perdurada por meses e nenhum pedido de desculpas foi feito a ex-companheira de Soulfly. Em nenhum momento eles exercitaram a autorreflexão e questionaram seus lugares de privilégio, assumindo que o fato de “não saber” foi uma escolha. Foram coniventes. Muitos dos socos que ela levou são resultantes do pacto fraternal de cada um que compunha o LA.M.A.

Os discursos e atitudes apresentados ao longo da nossa reflexão não podem permanecer impunes, precisam de responsabilização. Essa encenação e toda essa manipulação pode ser escancarada. A força das mulheres, das bichas, das loucas é a prova de que podemos fazer ruir esses discursos opressores materializados nas posturas de macho. A sororidade5 surge quando nós nos reconhecemos. Quando nos reconhecemos como sujeitas de nossas vidas, como companheiras no mundo – na contrapartida da inimizade e da competição difundidas sobre nossas relações – a sororidade existe. A experiência de nos agrupar, de nos organizar e compartilhar com nossas semelhantes contribui para a construção de uma realidade menos sofrida para nós. A soma de nossas pulsões, adivindas de tantos gritos silenciados, de tantas lágrimas derramadas, podem irromper e quebrar a solidariedade machulenta. Essa que tanto nos violenta e silencia, descorporificando o que realmente somos ou queremos ser.

A cada mulher que se sente louca, um homem mantém seu privilégio. A cada bicha silenciada, o machismo se sobrepõe. A cada mulher que permanece calada, há um macho coagindo-a. Não duvidemos das loucuras umas das outras, muito menos do silêncio da companheira. E reafirmamos: desconfiem do que eles dizem sobre nós. O machismo não é pontual, não é uma situação, é algo estruturante.

Em cada canto que uma voz for silenciada a sororidade, a cumplicidade e o cuidado com a outra devem existir. Não somente pelos laços de afinidade e amor que nutrimos para com as nossas amigas, mas para com tantas outras para além de nossos laços, enxergando-nos como irmãs e não como inimigas. A construção do nosso fortalecimento e a realização da nossa potência podem ultrapassar as fronteiras das barreiras pessoais, das intrigas. Não podemos cair nas armadilhas dos machos violentos que precisam do nosso enfraquecimento e da nossa desunião para manterem seus privilégios. Devemos cuidar da outra, por que ela também sou eu e eu também sou ela. Juntas podemos resistir. Tomemos conta de nossos corpos e façamos deles fontes de nossa libertação, ao escolher nossos caminhos, ao viver nossa sexualidade e a busca pelo prazer sem medo de se tocar, gozar, ao nos organizar. Que juntas aprendamos a nos defender para fortalecer a capacidade adormecida em cada uma de nós de sermos protagonistas de nossas existências, sem que digam para nós o que devemos fazer ou não. Criaremos mais e mais, derrubemos os muros do privado e o lado mais podre deles serão evidenciadas em cada beco, cada praça, cada quarto.

Duas mulheres se encontraram em um ônibus, e naquele momento, se reconheceram através da violência sofrida. Reconheçamo-nos nessas mulheres que se encontraram, que se reconheceram, se protegeram e se apoiaram. Carreguemos os nossos martelos, e mesmo que não tenhamos coragem de carregá-los como defesa, apoiemos as que os carregam.

Resistir juntas nos transforma hoje nas bruxas que morreram queimadas no passado, nas histéricas que, confinadas em hospícios, foram mortas acreditando que o desvio precisa ser a norma e em tantas outras mulheres que vieram antes de nós.

Essa carta é por todas as mulheres que já foram agredidas por Soulfly.
É por todas as mulheres e bichas que já sofreram e sofrem agressões cotidianamente.
Essa carta é para que nenhuma de nós continue se calando frente às violências e opressões.
É por nós que gritamos e por todas que nos erguemos!

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
A noite não adormecerá jamais
nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
(Conceição Evaristo)

 

 

Recife, 25 de julho de 2014,
A Convenção Histérica

 

1 Cisgênero é quando sua identidade de gênero está em consonância com o seu sexo, dentro do sistema heterossexual do desejo; quando sua conduta psicossocial, expressa nos atos mais comuns do dia-a-dia, está inteiramente de acordo com o que a sociedade espera. O termo é muito utilizado por tranfeministas para escancarar privilégios, nomeando o que antes não era nomeado, pois era tido como “normal”.
2 Atualmente é ex-membro do LA.M.A.
3 Muitas e muitas aspas nesse sutilmente.
4 Isso pode ser traduzido como misoginia, que significa ódio e/ou desprezo às mulheres e tudo que é ligado ao feminino.
5 Rapidamente: sororidade vem do latim, sororis (irmã) e idad (qualidade). Termo muito utilizado no feminismo numa dimensão política de reconhecimento e posicionamento das mulheres umas com as outras e perante o mundo; é frequentemente utilizado em contrapartida à fraternidade e solidariedade machistas.